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30/05/2012

A Vida é Sonho (Calderón de la Barca)


(...)

Segismundo (só) -

É certo; então reprimamos
esta fera condição,
esta fúria, esta ambição,
pois pode ser que sonhemos;
e o faremos, pois estamos
em mundo tão singular
que o viver só é sonhar
e a vida ao fim nos imponha
que o homem que vive, sonha
o que é, até despertar.
Sonha o rei que é rei, e segue
com esse engano mandando,
resolvendo e governando.
E os aplausos que recebe,
vazios, no vento escreve;
e em cinzas a sua sorte
a morte talha de um corte.
E há quem queira reinar
vendo que há de despertar 
no negro sonho da morte?
Sonha o rico sua riqueza
que trabalhos lhe oferece;
sonha o pobre que padece
sua miséria e pobreza;
sonha o que o triunfo preza,
sonha o que luta e pretende,
sonha o que agrava e ofende
e no mundo, em conclusão,
todos sonham o que são,
no entanto ninguém entende.
Eu sonho que estou aqui
de correntes carregado
e sonhei que noutro estado
mais lisonjeiro me vi.
Que é a vida? Um frenesi.
Que é a vida? Uma ilusão,
uma sombra, uma ficção;
o maior bem é tristonho,
porque toda a vida é sonho, 
e os sonhos, sonhos são.


la Barca, Calderón de. A Vida é Sonho. Tradução de Renata Pallotini. São Paulo: Hedra, 2008. pp. 71-73.

Ariano Suassuna e o Reino da Acauhan


Iluminura de Ariano Suassuna
ensinandoartesvisuais.blogspot.com
A João Suassuna

Aqui morava um Rei, quando eu menino:
vestia ouro e Castanho no gibão.
Pedra da sorte sobre o meu Destino, 
pulsava, junto ao meu, seu Coração.

Para mim, seu Cantar era divino,
quando, ao som da Viola e do bordão,
cantava com voz rouca o Desatino,
o Sangue, o riso e as mortes do Sertão.

Mas mataram meu Pai. Desde esse dia,
eu me vi, como um Cego, sem meu Guia,
que se foi para o Sol, transfigurado.

Sua Efígie me queima. Eu sou a Presa, 
Ele, a Brasa que impele ao Fogo, acesa,
Espada de ouro em Pasto ensangüentado.
                            
  *

 Infância

Sem lei nem Rei, me vi arremessado,
bem menino, a um Planalto pedregoso,
Cambaleando, cego, ao sol do Acaso,
vi o mundo rugir, Tigre maldoso.

O cantar do Sertão, Rifle apontado,
vinha malhar seu Corpo furioso.
Era o Canto demente, sufocado,
rugido nos Caminhos sem repouso.

E veio o Sonho: e foi despedaçado.
E veio o Sangue: o Marco iluminado,
a luta extraviada e a minha Grei.

Tudo apontava o Sol: Fiquei embaixo,
na Cadeia em que estive e em que me acho.
a sonhar e a cantar, sem lei nem Rei.

 *

  Dom

Se a visagem da Morte - a dura Garra - 
para sempre meu Sangue penetrou,
deu-me a Fonte-sagrada, e, sem amarras,
esta Voz em meu sangue se selou.

A visão do Nefasto, sol da Amarga,
todo o sangue do Mundo envenenou.
Nunca mais fui o mesmo, pois a Marca,
ao sol cruel do Sono, me apontou.

Mas, se fui para sempre assinalado,
achei o Veio, a chama do Tesouro,
que a Morte é sonho, a Vida é fogo e treino.

E, se o selo do Sol me tem, marcado,
me deu o Dom de, em três Bocais-de-ouro,
fazer ouvir as trompas do meu Reino.

   Ariano Suassuna (1927-)


CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA. Rio de Janeiro: Instituto Moreira Salles, nº 10, nov. 2000. pp. 140-143.

21/05/2012

O Pasto Iluminado ou A Sagração do Poeta Brasileiro desconhecido


Iluminogravura de Ariano Suassuna
http://www.wscom.com.br/diversao/noticia/diversao-noticias/ARIANO+SUASSUNA+ABRE+EXPOSICAO+NA-9556


Por Carlos Newton Júnior


 Aclamado como um dos maiores dramaturgos e romancistas de língua portuguesa, Ariano Suassuna continua, entre nós, infelizmente, tanto da parte do público quanto da crítica, quase desconhecido como poeta. De fato, poucos sabem que foi através de um poema - "Noturno", publicado no Jornal do Commercio, do Recife, em 7 de outubro de 1945 - que o autor, aos 18 anos de idade, se iniciou na vida literária que, daí até 1947, ano em que escreve sua primeira peça de teatro, Uma mulher vestida de sol, diversos poemas seus foram publicados em suplementos literários e revistas de cultura, dentre as quais pode-se destacar a revista Estudantes, da Faculdade de Direito do Recife; que, muito embora tenha alcançado o merecido reconhecimento no campo do teatro e do romance, Suassuna jamais abandonou a poesia.
  Pode-se dizer, de certo modo, que a culpa é do próprio Suassuna, que jamais se empenhou junto aos editores para publicar seus poemas. Ora, isento de vaidades inchadas, Suassuna é daqueles raros escritores conscientes de que o fundamental de sua obra realiza-se com lápis e papel. Tanto isso é verdade que ele continua, ainda hoje, escrevendo como sempre escreveu, ou seja, à mão, sem jamais ter se deixado seduzir pelas "facilidades" da máquina de escrever elétrica ou do computador - e creio mesmo que, no seu caso, em vez de lhe trazer benefícios, esses equipamentos só fariam é quebrar a ambiência ritualística ao seu processo de criação. De modo contrário ao que ocorre com aqueles que procuram o sucesso fácil, e não o êxito verdadeiro, Suassuna não se preocupa em editar porque sabe que a substância da sua obra é feita de futuro, não se encontrando, portanto, vulnerável ao escopro e ao esmeril do tempo. Assim, com ou sem perspectiva de publicação, é a mesma a alegria com que ele se debruça sobre o papel em branco, para realizar sua missão e vocação na festa da Literatura.
  Por outro lado, há muito o autor vem chamando a atenção dos seus leitores e da crítica, de um modo geral, não só para sua produção em poesia, mas, principalmente, para a importância dessa produção no entendimento do conjunto de sua obra. Suassuna já disse, inúmeras vezes, em entrevistas e artigos que sua poesia é a fonte profunda de tudo o que ele escreve. Parece-me que o descuido, portanto, deve ser atribuído muito mais aos editores e à crítica do que propriamente ao autor. Os editores sabem que poesia vende pouco - sobretudo uma poesia em boa parte hermética como a de Suassuna, que requer, para ser melhor compreendida, alguma familiaridade com o universo literário do autor. A crítica, por sua vez, quase sempre fecha os olhos para o insólito e o verdadeiramente novo, deixando à História da Literatura a tarefa de corrigir, no futuro, seus erros e omissões. De modo que, nesses tempos de globalização e de conseqüente massificação cultural, sempre que me deparo com o silêncio em torno de um poeta com a dimensão de Suassuna (ou com a dimensão daquele outro grande poeta brasileiro que é Foed Castro Chamma, cujo ostracismo editorial dos últimos anos chega a ser um verdadeiro crime contra os leitores de poesia), lembro, com pesar, da seguinte passagem de O arco e a lira, de Octavio Paz: "O cansaço de uma sociedade não implica necessariamente a extinção das artes nem provoca o silêncio do poeta. O mais provável é que ocorra o contrário: suscita o aparecimento de poetas e obras solitárias. Cada vez que surge um grande poeta hermético ou movimentos de poesia em rebelião contra os valores de uma sociedade determinada, deve-se suspeitar  de que essa sociedade, não a poesia, padece de males incuráveis."
  Seja como for, o resultado desse descaso editorial em relação à poesia de Suassuna é o que se vê: sem contar o volume de poemas recentemente publicado pela Universidade Federal de Pernambuco, que tive a honra e o privilégio de organizar, a poesia do autor do Auto da Compadecida e do Romance d'A Pedra do Reino permanece praticamente inédita em livro. Em compensação, os raros críticos que chegaram a se debruçar sobre essa poesia foram unânimes em realçar sua qualidade fora do comum, qualidade que faz dela, sem favor algum, ponto alto da literatura brasileira e universal. Talvez o mais recente pronunciamento a esse respeito tenha sido o do crítico e também poeta português Paulo Alexandre Esteves Borges. Referindo-se, num artigo, às iluminogravuras de Ariano Suassuna (trabalho em que o autor alia suas qualidades de poeta às de artista plástico), Borges não deixa de revelar seu entusiasmo poe escrever sobre "algo de venerável", de uma beleza fascinante, "estranha, bárbara e mesmo monstruosa", cuja fruição é capaz de proporcionar uma "perturbação sagrada" e fazer com que os leitores sejam "arrebatados num raro momento do eterno regresso de uma arte verdadeiramente religiosa".
  Se me fosse possível falar em termos de hierarquia, ao me referir às muitas portas de entrada que o reino das artes possui, diria que Suassuna, ao escrever seus primeiros poemas, entrou logo pela porta principal. Sua poesia não tem altos e baixos, e seus poemas de juventude já demonstram a técnica precisa que irá caracterizar toda a sua produção futura. Logo de início, Suassuna demonstra não concordar com alguns pressupostos do Modernismo, como a "liberdade'' do verso e da forma. De fato, considerando sua produção poética como um todo, em poucas ocasiões o autor fará uso do verso não metrificado ou escreverá poemas sem rima e estrofação regulares. Por outro lado, como não poderia deixar de ser , ouve-se, nesses primeiros poemas, o eco dos seus mestres de então, alguns que o acompanharão por toda a vida - e aí já não mais como mestres, e sim como companheiros de jornada, cada vez mais silenciosos. Quando adolescente, Suassuna já era um leitor fervoroso de Camões e Dante, além de admirador dos poetas românticos ingleses, notadamente de Shelley e Keats. O primeiro contato com a poesia modernista brasileira deu-se também por essa época, através dos versos de Ascenso Ferreira e Jorge de Lima musicados por Lourenço Barbosa, o Capiba, que antes de ser seu amigo já o era de seus irmãos mais velhos.
  Ainda estudante secundarista, Suassuna toma conhecimento da poesia de Federico García Lorca. A obra de Lorca representa um verdadeiro deslumbramento para o jovem poeta paraibano, que se depara, então, com um grande escritor erudito cuja fonte de inspiração transbordava de uma água cristalina e de veio popular, jorrada principalmente através do Romance ibérico.
  Ora: tendo passado a infância no sertão, Suassuna há muito era um apaixonado pelo Romanceiro popular nordestino e outras manifestações de nossa arte popular, que conhecia desde menino. A partir da poesia de Lorca, cujas paisagens eram povoadas de ciganos, bois e cavalos, Suassuna percebe que poderia fazer, em relação ao sertão do Nordeste Brasileiro, o que Lorca fazia em relação ao mundo rural da Espanha - ou seja: falar com o sangue do que lhe era tão familiar para ser compreendido pela comunidade da raça humana.
  Ao ingressar na Faculdade de Direito do Recife, em 1946, Suassuna liga-se ao grupo de estudantes que irá retomar, naquele mesmo ano, sob a liderança de Hermilo Borba Filho, o Teatro do Estudante de Pernambuco (TEP). Uma retomada sob nova inspiração teórica, direcionada sobretudo para a pesquisa em prol de um teatro brasileiro novo, de raízes nordestinas e populares. Através de Hermilo, de quem se tornará grande amigo, Suassuna passa a conhecer, também, o teatro de Lorca, estímulo que lhe faltava para que desse início à sua carreira de dramaturgo. Durante a existência do TEP, de 1946 a 1952, a produção poética de Suassuna acompanha, em extensão, sua produção no campo do teatro. O estudo aprofundado da poesia popular passa a ser, então, uma constante em sua vida, até porque é partindo principalmente dos folhetos do Romanceiro popular nordestino que ele vai encontrar o caminho para criar toda a sua obra teatral. Datam de 1946 a 1948 seus primeiros poemas ligados a este Romanceiro, como "A morte do touro Mão de Pau", "Beira-Mar'', ''Os Guabirabas'', ''Encontro'', ''A barca do céu'', entre outros. A rima toante, às vezes usada nesses poemas, é influência do Romanceiro ibérico; por outro lado, em vez da quadra ibérica (quatro versos de sete sílabas, rimadas em ABCB), Ariano dá preferência à sextilha, ou repente, a estrofe mais usada pelos cantadores do sertão nordestino, formada por seis versos de sete sílabas, rimadas em ABCBDB. Vejamos as duas primeiras estofes de "Os Guabirabas", poema escrito todo em sextilhas:

Lá vai Cirino na estrada,
em seu cavalo Alazão.
Cascos ferrados, nas pedras,
chispando Fagulhas vão,
na roseta das Esporas,
na Lança de seu ferrão.

Cirino, cuida na vida,
cuida nas pedras da Estrada!
Não foste há pouco avisado
de que a vida é uma emboscada?
Não durmas tendo inimigo,
Cirino da Guabiraba!

  O fato de Ariano Suassuna ter estreado como poeta em 1945, e com uma poesia em que jamais predominou o verso livre, pode levar alguém mais apressado a achar que ele se encontrava em sintonia com os poetas da chamada "Geração de 45". Em parte isto é verdade. Existe, na poesia do autor, uma certa identificação com a poesia da ''Geração de 45'', principalmente no apego à disciplina da expressão poética. Mas é preciso deixar claro que a poesia de Suassuna, desde o início, trilhou caminhos muito particulares, principalmente a partir do momento em que o escritor procura vincular sua produção de poeta erudito ao Romanceiro popular nordestino. Nas muitas incursões que empreende pelo campo da poesia, Suassuna exercita-se com diversas formas poéticas, tanto as da tradição erudita quanto as do nosso Romanceiro, a ponto de trabalhar um soneto com a mesma naturalidade com que trabalha um ''martelo agalopado'', um ''galope à beira-mar'' ou um ''repente''. Parece-me, aliás, que aquilo que Suassuna afirmou a propósito da poesia de Cecília Meireles pode, em parte, ser aplicado à sua própria poesia: ''[...] enquanto os Modernistas Ortodoxos empreendiam uma ruptura total, meio de 'Vanguarda' e anedótica com a Tradição, a grande escritora do 'Romanceiro da Inconfidência' representa não uma ruptura mas sim um aprofundamento, uma renovação e uma recriação de certas experiências simbolistas, isto pelo caminho, aparentemente paradoxal e 'reacionário', do mergulho nas raízes antigas, no passado ibérico e no Romanceiro medieval português".
(...)
(Em edição) 



20/05/2012

Entrevista com Ariano Suassuna - Cadernos de Literatura Brasileira (I)


Ariano Villar Suassuna (1927-) em ensaio para Cadernos de Literatura Brasileira.
Fonte: 
http://omundocomoelee.blogspot.com.br 
Entrevista


Ao sol da prosa brasiliana




Cadernos de Literatura Brasileira: Registre-se, para começar, que esta nossa conversa acontece sob o signo de algumas efemérides. Comemoram-se nada menos que os 30 anos da redação do Romance d'A Pedra do Reino, que o sr. terminou de escrever em outubro de 1970; o lançamento, também em outubro daquele mesmo ano, do Movimento Armorial, no Recife; os 70 anos da Revolução de 30, deflagrada em 3 de outubro de 1930, e o assassinato de seu pai, João Suassuna, seis dias depois, no Rio de Janeiro. Como o sr. vê o encadeamento desses fatos que marcaram tão fortemente a sua vida e a sua obra? Seria mera coincidência ou o sr. acredita que a relação entre eles possa ter outra natureza?

Ariano Suassuna: Bem, em certos pontos podem ser coincidências, mas em outros não. Se você for olhar, vai ver que eu concluí o Romance d'A Pedra do Reino no dia 9 de outubro de 1970, quando estavam se completando 40 anos do assassinato dele. Foi uma forma de homenagem. Já o Movimento Armorial era para ser lançado também no 9 de outubro, só que houve um impedimento da orquestra e fomos obrigados a adiar para o dia 18. Sou muito atento a esse negócio de datas, mas não chego a ser astrólogo como o Quaderna (personagem de seus romances, surgido em A Pedra do Reino), deixa isso pra ele. Por falar em A Pedra do Reino, eu comecei a escrevê-lo no dia 19 de julho, que é a data do aniversário da minha mulher, Zélia.

Cadernos: O sr. costuma atribuir ao seu pai pelo menos dois tipos de participação no processo que o levou a se dedicar à carreira literária. Em primeiro lugar, foi na biblioteca de João Suassuna que o sr. descobriu leituras fundamentais - do Scaramouche, de Rafael Sabatini, e Os Três Mosqueteiros, de Dumas, a Os Sertões, de Euclides da Cunha. Mais do que isso, seus romances em especial parecem tentativas de "devolver a vida" ao seu pai. Assim, no seu caso, de certo modo, não se poderia falar, com o jargão psicanalítico, em "matar o pai". Em que medida esse esforço para recuperar a figura paterna através da literatura pode ter funcionado como uma "missão", da qual o sr. jamais se sentiria no "direito" de se desviar em favor de outros temas?

Ariano: É verdade, esses livros que vocês citaram eram da biblioteca de meu pai. No meu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, está dito claramente que, como escritor, eu sou aquele mesmo menino que lia na biblioteca do pai. Uma das missões da minha literatura é essa que vocês apontam. Eu encaro a literatura como um esforço. E por isso me rebelo contra as pessoas que querem olhar o livro como um objeto de mercado, porque pode ser vendido, mas não é isso o que mais importa - pelo menos, não no meu caso. O que eu considero fundamental é o ato de escrever. Se, ao publicar o livro, eu tiver êxito junto ao público, tanto melhor. Mas eu digo a vocês com toda a sinceridade, não estou fingindo, não: para mim, o fundamental é o ato de escrever.

(...)

Cadernos: Se a presença da figura do pai é muito forte em sua literatura, o mesmo não acontece com a figura da mãe - como, de resto, com o elemento feminino, ao qual não cabe qualquer protagonização no romance A Pedra do Reino, sua obra capital. Como foi sua relação com Dona Rita de Cássia Dantas Villar Suassuna, sua mãe?

Ariano: Foi extraordinária. E vou discordar um pouquinho de vocês. Eu não acho que a presença feminina seja menos marcante na minha obra do que a masculina. Talvez - voltando a Freud - a forte presença masculina tenha a ver com a maneira como meu pai morreu. Só isso. Mas a presença feminina também é forte. Minha mãe foi uma figura excepcional. Vocês vejam, ela ficou viúva aos 34 anos com nove filhos e assumiu a família de tal maneira que ninguém discordava dela. Todos nós tínhamos consciência da situação que ela enfrentava com coragem e, se quisesse dar um desgosto a minha mãe, era só chegar perto dela se lamuriando da vida. Ela foi muito forte. Mamãe era nordestina, profundamente enérgica e profundamente meiga. Vou dizer uma coisa e vocês me entenderão melhor. Minha mãe usou luto a vida inteira, mas nunca deixou a gente usar. Ela dizia que se vestia de preto como uma forma de protesto, mas não queria alimentar aquilo na gente.

Cadernos: E o que o sr., conforme ia amadurecendo, pensava disso?

Ariano: Meus pais eram católicos, tanto que se casaram na igreja. Mas minha avó, quando adoeceu - acho que ela teve um câncer, naquela época falava-se em tumor, mas hoje acredito que tenha sido um câncer -, foi operada por um médico americano, um tal de Dr. Butler, que era protestante. Com isso, ela acabou se convertendo ao protestantismo. Minha mãe a acompanhou nessa crença e eu acabei sendo educado num colégio protestante. Na adolescência, rompi com tudo. Quando li Os Irmãos Karamazov, de Dostoiévski, encontrei uma frase que foi decisiva para mim. Lá estava escrito que se Deus não existisse tudo era permitido. Eu achava que nem tudo era permitido, então, pensei, isso quer dizer que Deus existe. Comecei a olhar Deus de outro modo e, ao conhecer a obra de Miguel de Unamuno, me tomei de admiração por ele, que era um católico heterodoxo, exatamente como eu precisava (pois Dostoiévski era um católico ortodoxo). Pois bem: protestante ou católico, ortodoxo ou heterodoxo, não importa, todos eles lidam com a morte do mesmo modo, quer dizer, aceitam porque acreditam na existência de Deus. Eu digo com franqueza: não foi fácil, para nenhum de nós, aceitar o assassinato de meu pai, mas minha mãe não queria que a gente se alimentasse de ódio. Ela não disse, irresponsavelmente, durante muito tempo, que perdoava o assassino de meu pai. Demorou muito para que ela um dia chegasse e dissesse que tinha perdoado o criminoso.

Cadernos: Quando foi isso? 

Ariano: Depois do meu casamento; eu já tinha até filhos.

Cadernos: E o sr., perdoou?

Ariano: Esse é um processo que ainda está em curso. Inclusive, a purificação trazida pelo Romance d'A Pedra do Reino me ajudou muito. Mas deixa eu voltar para a questão que levantou tudo isso, a presença feminina na minha obra. Eu não sei se vocês repararam, mas eu acho que o Deus dos calvinistas é excessivamente parecido com o Deus dos judeus, quer dizer, é um Deus muito masculino e paterno. E eu sentia a falta da presença feminina e materna, da virgindade, está certo? Foi isso que eu procurei na Igreja Católica através da figura de Nossa Senhora - é aí que eu digo a vocês que, numa peça como Auto da Compadecida, a presença feminina é fundamental. Ela está lá, bastante marcada, para dar o equilíbrio, entende? Pronto. Agora vou lhes dizer outra coisa: quando eu comecei a me reaproximar da figura do Deus Criador, me faltava uma coisa - me faltavam as mulheres. Foi nisso que a minha mulher, Zélia, desempenhou um papel importantíssimo - e ela era católica. Nesse plano de catolicismo, também foi fundamental para mim um colega de turma chamado Carlos Frederico do Rego Maciel (ele era primo de Marco Maciel). Católico absolutamente convicto, ele era ridicularizado em toda a universidade - mas sustentava a sua posição com bom humor e aquilo me tocava bastante. Então, quando fui me crismar, chamei o Carlos para padrinho.

Cadernos: O sr. disse que A Pedra do Reino funcionou como uma expiação. De que maneira isso aconteceu?

Ariano: Vou explicar para vocês a gênese d'A Pedra do Reino. No início dos anos 50, eu tentei primeiro escrever uma biografia do meu pai que se chamaria Vida do presidente Suassuna, cavaleiro sertanejo. Eu tinha esse projeto, mas não consegui escrever. Era uma carga de sofrimento muito grande. Tentei outro gênero, que era um pouco mais distanciado - a poesia. Tentei escrever um poema longo chamado "Cantar do potro castanho". Isso foi por volta de 1954. Não consegui também. Aí eu disse: deixa isso pra lá, não vou bulir com isso mais não. Então, em 1958, comecei a tomar notas para um romance longo, que era A Pedra do Reino. Fiz mais de uma versão d'A Pedra.

Cadernos: O sr. mostrava o que ia fazendo para alguém?

Ariano: Sim, como faço até hoje. Dei uma das versões para minha irmã Germana ler. É uma pessoa de quem eu gosto e na qual confio muito. Um dia, ela me disse: "Ariano, você já notou que a morte do padrinho de Quaderna é a morte de João Dantas?" João Dantas era primo da minha mãe e assassinou João Pessoa. Foi por causa da morte de João Pessoa que a família dele pensou em matar meu pai, acusado de ser o mandante. Foi só quando Germana me disse aquilo que eu me dei conta de que a morte do padrinho de Quaderna, aquela morte impossível de ser cometida, em quarto fechado, era a morte de João Dantas. Ele morreu aqui, na Detenção, que hoje é a Casa de Cultura. E, vejam vocês, eu vim visitá-lo com minha mãe no dia 3 de outubro de 1930, porque no dia 30 de setembro tinha morrido o pai dele. A gente estava refugiado aqui em Paulista. Mamãe foi comigo e com meu irmão João até a Casa de Detenção e lembro que fiquei impressionado com a altura das escadas e com o tamanho das chaves que abriram a cela. Eu lembro também que João Dantas estava de meia e chinelos, coisa que não se usava muito. Ele estava numa mesa jogando baralho. Vejam bem: era 3 de outubro, ia estourar a Revolução de 30; as tropas da Paraíba depuseram o governador, tomaram o poder e desceram para cá. Aqui, tomaram a cadeia, e na madrugada do dia 6, João Dantas foi encontrado com a garganta cortada, na cela do terceiro andar da Detenção. Até hoje a gente tem certeza que ele foi assassinado e o outro lado diz que foi suicídio. Depois que Germana me falou aquilo, eu acentuei os detalhes para aproximar as duas mortes e aí fiz essa versão que vocês conhecem.

Cadernos: Sua família está no centro de alguns capítulos importantes da História do Brasil. E eles se referem a coisas arcaicas. A dívida de sangue, por exemplo, é um padrão arcaico e universal. Veja o caso do albanês Ismail Kadaré, um estudioso da Grécia - tem, inclusive, um livro sobre Ésquilo. Kadaré escreveu Abril Despedaçado, que trata do círculo fechado da vingança, um assunto presente na Europa e no Nordeste brasileiro. Tanto que uma adaptação do romance está sendo filmada por Walter Salles.

Ariano: É verdade. Essas dívidas de sangue de que você fala muito bem estão presentes nas sociedades fechadas rurais e arcaicas. No município onde meu pai nasceu, Catolé do Rocha, existem duas famílias, os Suassuna e os Maia, que brigam a vida toda, desde o século XIX. É o arcaico que permanece. O conflito dos Kennedy, católicos irlandeses, com a sociedade protestante anglo-saxônica, o que é aquilo? e olhe, acontecendo num país considerado o "padrão da modernidade". Mas o arcaico está lá, não é verdade? Por sorte ou por azar, eu tive tudo isso dentro de casa. Tudo isso dentro de casa, antes de fazer qualquer opção. E vejam, de novo, a sabedoria de mamãe. Ela não permitiu que a gente se alimentasse daquele ódio: tirou a gente de lá. Mamãe se mudou para o Recife para tirar a gente daquele círculo de vingança.

Cadernos: Para interromper o ciclo da dívida de sangue.

Ariano: Exatamente. E ela fez isso tão bem que, até os meus 50 anos, eu não sabia que o assassino do meu pai estava vivo. Ela dizia que ele tinha morrido.

Cadernos: É a mulher compassiva do Auto da Compadecida?

Ariano: Isso, pronto.

Cadernos: E como o sr. soube que o assassino do seu pai estava vivo?

Ariano: Soube por terceiros. O criminoso se chamava Miguel Alves de Souza, era um pistoleiro. Meu pai estava saindo, de manhã, com um amigo - Caio Gusmão -, do hotel onde se hospedava, na Rua Riachuelo, no Centro do Rio. Ia para uma sessão na Câmara. Miguel atirou pelas costas. Foi preso um ou três dias depois, mas se livrou da cadeia em menos de um mês e foi para a Paraíba. Minha mãe denunciou a Getúlio Vargas e o pistoleiro foi preso de novo e condenado em 1931. Pegou quatro anos, mas ganhou liberdade depois de cumprir metade da pena e voltou para o Rio. Quando eu soube que ele estava vivo, perguntei a minha mãe: "A sra. dizia pra gente que o Miguel tinha morrido, por quê?" Ela respondeu: "É verdade, meu filho, eu menti. Precisava tirar esse peso de vocês." Pouco antes de morrer, minha mãe deu uma entrevista procurando inocentar o mandante. Eu tenho a impressão de que ela fez isso ainda temendo que a gente pudesse agir movido por um sentimento de vingança, de dívida de sangue.

Cadernos: O Romance d'A Pedra do Reino não é um tipo de vingança de sua parte?

Ariano: Não. Eu acho que é uma tentativa de recuperação. Por isso eu acho o nome Pedra muito importante. É como se eu encaixasse uma pedra angular para erguer um monumento ao meu pai.

(Continua...)

CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA. Rio de Janeiro: Instituto Moreira Salles, nº 10, nov. 2000. pp. 24-29.

A Filosofia do Penetral


                                                  FOLHETO XXX
                                     A FILOSOFIA DO PENETRAL


 Há muito tempo que eu desejava me instruir sobre aquela profunda Filosofia clementina, para me ajudar em meus logogrifos. Por isso, avancei:
 Clemente, esse nome de "penetral" é uma beleza! É bonito, difícil, esquisito, e, só por ele, a gente vê logo como sua Filosofia é profunda e importante! O que é que quer dizer "penetral", hein?
 Clemente, às vezes, deixava escapar "vulgaridades e plebeísmos" quando falava, segundo sublinhava Samuel. Naquele dia, indagado assim, respondeu:
 Olhe, Quaderna, o "penetral" é de lascar! Ou você tem "a intuição do penetral" ou não tem intuição de nada! Basta que eu lhe diga que o "penetral" é a união do faraute com o "insólito regalo", motivo pelo qual abarca o faraute, a quadra do deferido, o trebelho da justa, o rodopelo, o torvo torvelim e a subjunção da relápsia!
 Danou-se! exclamei, entusiasmado. O penetral é tudo isso, Clemente?
 Tudo isso e muito mais, Quaderna, porque o penetral é "o único-amplo"! Você sabe como é que "a centúria dos íncolas primeiros", isto é, os homens, sai da "desconhecença" para a "sabença"?
 — Sei não, Clemente! — confessei, envergonhado.
 — Bem, então para ir conhecendo logo o processo gaviônico de conhecimento penetrálico, feche os olhos!
 — Fechei! — disse eu, obedecendo.
 — Agora, pense no mundo, no mundo que nos cerca!
 — O mundo, o mundo... Pronto, pensei!
 — Em que é que você está pensando?
 — Estou pensando numa estrada, numas pedras, num bode, num pé de catingueira, numa Onça, numa mulher nua, numa coroa-de-frade, no vento, na poeira, no cheiro do cumaru e num jumento trepando uma jumenta!
 — Basta, pode abrir os olhos! Agora me diga uma coisa: o que é isto que você pensou?
 — É o mundo!
 — É não, é somente uma parte dele! É "a quadra do deferido", aquilo que foi deferido a você, como "íncola"! É o "insólito regalo"! É "o côisico", dividido em duas partes: a "confraria da incessância" e a "força da malacacheta", representada, aí no que você pensou, pelas pedras. Agora pergunto: tudo isso pertence ou não pertence ao penetral?
 — Não sei não, Clemente, mas pela cara que você está fazendo, parece que pertence.
 — Claro que pertence, Quaderna! Tudo pertence ao penetral! Tudo se inclui no penetral! Entretanto, para completar "o túdico" você, na sua enumeração do mundo, deixou de se referir a um elemento fundamental, a um elemento que estava presente e que você omitiu! Que elemento foi esse, Quaderna?
 — Sei não, Clemente!
 — Foi você mesmo, "o faraute"!
 — O Faraute não, o Quaderna! — disse eu logo, cioso da minha identidade.
 — O Quaderna é um faraute! — insistiu Clemente.
 Como aquilo podia ser alguma safadeza, reagi:
 — Epa, Clemente, vá pra lá com suas molecagens! Faraute o quê? Faraute uma porra! Faraute é você! Não é besta não?
 — Espere, não se afobe, não, homem! Faraute não é insulto nenhum! Eu sou um faraute, você é um faraute, todo homem é um faraute!
 — Bem, se é assim, está certo, vá lá! E o que é um faraute, Clemente?
 — Ora, Quaderna, você, leitor assíduo daquele Dicionário Prático Ilustrado que herdou de seu Pai, perguntar isso? Vá lá, no seu querido livro de figuras, que encontra! "Faraute" significa "intérprete, língua, medianeiro"! O curioso é que "a quadra do deferido" e o "rodopelo" pertencem ao penetral, mas o faraute, seja "nauta-arremessado" ou "tapuia-errante", também pertence! Não é formidável? É daí que se origina "o horrífico desmaio", o "tonteio da mente abrasada"! Inda agora, quando pensou no mundo, você não sentiu uma vertigem não?
 — Acho que não, Clemente!
 — Sentiu, sentiu! É porque você não se lembra! Quer ver uma coisa? Feche os olhos de novo! Isto! Agora, com as mãos atrás da nuca! Muito bem! Pense de novo naquele trecho do insólito regalo em que pensou há pouco! Está pensando?
 — Estou!
 — Agora, me diga: você não está sentindo uma espécie de tontura não?
 Eu, que sou impressionável demais, comecei a oscilar, sentindo uma tonteira danada, na cabeça. Pedi permissão a Clemente para abrir os olhos, porque já estava a ponto de cair da sela. O Filósofo, triunfante, concedeu:
 — Abra, abra os olhos! Como é? Sentiu ou não sentiu a vertigem? Sabe o que é isso? É a "oura da folia", início da "sabença", da "conhecença"! A oura causa o "horrífico desmaio". Este, leva ao "abismo da dúvida", também conhecido como "a boca hiante do contempto". O abismo comunica ao faraute a existência do "pacto" e da "ruptura". A ruptura conduz à "balda do labéu". E é então que o nauta-arremessado e tapuia-errante torna-se único-faraute. Isto é, o faraute é, ao mesmo tempo, faraute do insólito-regalo, faraute do rodopelo e faraute do faraute! Está vendo? O que é que você acha do penetral, Quaderna?
 — Acho de uma profundeza de lascar, Clemente! Para ser franco, entendi pouca coisa, mas já basta para me mostrar que a sua Filosofia é foda! Mas o que é, mesmo, penetral?
 — Vá de novo ao "pai-dos-burros"! "Penetral" é "a parte mais recôndita e interior de um objeto". Mas, na minha Filosofia, essa noção é ampliada, porque além de abranger a quadra do deferido e o rodopelo, o penetral abrange também o faraute, através da subjunção da relápsia! Mas, no momento em que se fala friamente do penetral, tentando capturá-lo em categorias de uma lógica sem gavionice negro-tapuia, ele deixa de ser apreendido! Faça seu apelo aos gaviônicos restos de sangue Negro e Tapuia que você tem, Quaderna, e entenda que o penetral "é o penetral", que o penetral "é"! O côisico, coisica: os cavalos cavalam, as árvores arvoram, os jumentos jumentam, as pedras pedram, os móveis movelam, as cadeiras cadeiram, e o faráutico, machendo e feminando, é que consegue genter e farauticar! É assim que o túdico tudica e que o penetral penetrala — e esta, Quaderna, é a realidade fundamental!
 — Arra diabo! — disse eu, de novo embasbacado. — E tudo isso já estava na Mitologia Negro-Tapuia, Clemente?
 Estava, estava! Aliás, está ainda! É por isso que o "Gênio da Raça Brasileira" será um homem do Povo, um descendente dos Negros e Tapuias, que, baseado nas lutas e nos mitos de seu Povo, faça disso o grande assunto nacional, tema da Obra da Raça!
 Claro que era em si mesmo que Clemente estava pensando. Mas Samuel contestou logo:
 — Nada disso, Quaderna! O "Gênio da Raça Brasileira" deverá ser um Fidalgo dos engenhos pernambucanos! Um homem que tenha nas veias o sangue dos Conquistadores ibéricos que fundaram, com a América Latina como base, o grande Império que foi o orgulho da Latinidade católica! Portugal e a Espanha não tinham dimensões para realizar aquilo que, neles, foi somente uma aspiração! Mas o Brasil é um dos sete Países perigosos do mundo! Por isso, cabe a nós instaurar, aqui, esse Império glorioso que Portugal e a Espanha não puderam realizar!
 — A meu ver, em prosa! — disse Clemente.E é assunto decidido, porque o filósofo Artur Orlando disse que "em prosa escrevem-se hoje as grandes sínteses intelectuais e emocionais da humanidade"! 
 Samuel discordou:
 Como é que pode ser isso, se todas as "obras da raça" dos Países estrangeiros são chamadas de "poemas nacionais"?
 — O Almanaque Charadístico diz, num artigo, que os Poetas-nacionais são, sempre, autores de Epopéias! — tive eu a ingenuidade de dizer. 
 Os dois começaram a rir ao mesmo tempo:
 — Uma Epopéia! Era o que faltava! — zombou Samuel. — Vá ver que Quaderna anda pelos cantos é conspirando, para fazer uma! Sobre o quê, meu Deus? Será sobre essas bárbaras lutas sertanejas em que andou metido? Não se meta nisso não, Quaderna! Não existe coisa de gosto pior do que aquelas estiradas homéricas, cheias de heróis cabeludos e cabreiros fedorentos, trocando golpes em cima de golpes, montados em cavalos empastados de suor e poeira, a ponto de a gente sentir, na leitura, a catinga insuportável de tudo! 
 Clemente uniu-se ao rival, se bem que por outro caminho. Disse: 
 — Além disso, a glorificação do Herói individual, objetivo fundamental das Epopéias, é uma atitude superada e obscurantista! E se você quer uma autoridade, Carlos Dias Fernandes também já demonstrou, de modo lapidar, que, nos tempos de hoje, a Epopéia foi substituída pelo Romance! 
 SUASSUNA, Ariano. Romance d'A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta. Folheto XXX: A Filosofia do Penetral. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1976. 4ª edição. pp. 143-146.


15/05/2012

Millôr Fernandes sobre Ariano Suassuna


Millôr Fernandes (1923-2012)
O jornalista, humorista, desenhista, dramaturgo, poeta e tradutor Millôr Fernandes nasceu em 1923, no bairro carioca do Méier. Em 1938, iniciou sua carreira em O Cruzeiro, onde manteve, entre 1945 e 1963, sob o pseudônimo de Vão Gogo, a página dupla “Pif-Paf”. Fundou em 1964 a revista Pif-Paf, que durou apenas sete números — o oitavo foi apreendido pela Censura. Colaborou com Veja (1968-1982),  O Pasquim (1969-1975), Istoé (1983-93) e O Estado de S. Paulo, entre outros órgãos da imprensa. Atualmente escreve e desenha, como é de seu estilo, na Folha de S. Paulo, (caderno “Mais!”). Na área da dramaturgia, escreveu peças como Uma mulher em três atos (1952), Liberdade, liberdade (1966, junto com Flávio Rangel) e É... (1977). Traduziu obras de William Shakespeare e Bertolt Brecht, entre outros autores. Seu nome está associado a mais de cem espetáculos teatrais, caso de O Santo e a Porca, de Ariano Suassuna — Millôr é o autor do cartaz da montagem dirigida por Ziembinski em 1958.

“O passado, todos sabem, é uma invenção do presente. Quem busca datas para os acontecimentos já os está deturpando. Além do que, de datas eu não sei mesmo. Por isso afirmo que foi no fim dos anos 50 que me levantei entusiasmado e invejoso, no Teatro Dulcina, na Cinelândia, para aplaudir o Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna. Ao meu lado, fazendo o mesmo, Silveira Sampaio, médico que há pouco tinha abandonado a medicina para se transformar no autor de algumas peças  leves e refinadas, que dirigia e interpretava. Terminado o espetáculo, fomos os três para minha casa — já na praia de Ipanema, idílica então — e ficamos conversando, varando a noite. E o dia foi amanhecendo por trás das montanhas Dois Irmãos, ainda livres do Hotel Sheraton, da favela do Vidigal, dos sinais luminosos, do tráfego ensandecido, enfim, da civilização. Só com raparigas em flor caminhando cronologicamente pro encontro fatal com Vinicius e Tom.
 Não me lembro de uma só palavra de Ariano. Ficou-me a forte impressão. Resíduos. A memória da memória.
 Quantos encontros tive com Ariano desde então? Não mais de dez. mas em nossa profissão, lavradores do nada, o contato é permanente. E, se fiz alguma coisa para decepcioná-lo, não sei. Ele não fez nada que me decepcionasse. Não lhe cobro nem com a Academia. Merece todas as imortalidades, até mesmo essa, pechisbeque (corrida ao Aurélio).
 Meu outro e imediato contato com Ariano foi em O Santo e a Porca. A pedido de Walmor Chagas e Cacilda Becker fiz o cartaz para a peça, cartaz que me defrontou um dia, para minha vergonha — sempre tenho vergonha do que faço, meu sonho é ser autor morto —, num dos caminhos do Aterro. Nem sei se Ariano jamais viu ou soube desse contato.
 Enquanto isso, Ele se expandia. Professor nato — não há nada mais fascinante do que didática, e a dele é excepcional — e criador compulsivo, se fez batalhador de causas culturais populares, exibiu em espetáculos teatrais sua capacidade de representar — é um grande showman, quem não viu não sabe o que perdeu —, fez-se um desenhista primoroso e escreveu A Pedra do Reino, que coloco facilmente entre os 10 maiores romances brasileiros (nunca me arrisco a dizer que alguma coisa é a maior), incluindo aí Guimarães Rosa e excluindo Machado de Assis, quem quiser que me siga.
 Uma das outras vezes que estive com meu herói foi no Recife, Instituto Joaquim Nabuco, onde Ele, enquanto aguardávamos minha oportunidade de incitar o povo com meu verbo flamante, recitou o primeiro poema (soneto) que escrevi na vida, aos 20 anos (já tive!, posso provar), e que também recito aqui, para vocês verem que há que ter memória:

Penicilina puma de casapopéia
Que vais peniça cataramascuma
Se partes carmo tu que esperepéias
Já crima volta pinda cataruma.

Estando instinto catalomascoso
Sem ter mavorte fide lastimina
És todavia piso de horroroso
E eu reclamo Pina! Pina! Pina!

Casa por fim, morre peridimaco
Martume ezole, ezole martumar
Que tua pára enfim é mesmo um taco.

E se rabela capa de casar
Estrumenente siba postguerra
Enfim irá, enfim irá pra serra.

No dia seguinte, autor ingrato, almoçando com Ele, cobrei ter errado uma palavra no soneto. 'Errei não', voltou ele. 'Corrigi. Você é que errou a métrica.'
 Somos do tempo em que havia métrica.
 E a última vez em que estivemos juntos foi o momento mais extraordinário. Na casa de nosso comum amigo José Paulo Cavalcanti, jornalista, escritor e causídico (a ordem é a do leitor), numa praia de quatro quilômetros de extensão, em Porto de Galinhas. Ficamos lá horas, conversando dentro d'água, num mar indizível mas que vou tentar dizer.
 A meu lado, dentro das águas claras, mansas e verdes, a presença absolutamente surreal de Ariano, secundado por (apertem os cintos!) Luis Fernando Verissimo. E eu ali, galera, me boquiabrindo diante da loquacidade brilhante de Suassuna e me boquifechando diante do mutismo perturbador de Verissimo, mostrando, como sempre, que não é homem de jogar conversa fora.
 Ao redor, a meteorologia no seu melhor, enviando leves pancadas de chuva em momentos precisos, e vento sempre fresco, com dezoito nós e alguns laços — os da amizade.

PS: Ah, e existe coisa mais nobre do que criar cabras? Ele cria. Coisas de grão-senhor."

CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA. Rio de Janeiro: Instituto Moreira Salles, nº 10, nov. 2000. pp. 20-21.


Cadernos de Literatura Brasileira
sobre Ariano Suassuna
Instituto Moreira Salles







14/05/2012

A Filosofia segundo Rabi Moshe Chaim Luzzatto


Rabi Moshe Chaim Luzzatto (1707-1746)





O Mundo Como Labirinto


 A que isto se parece? A um jardim em labirinto, um tipo de jardim muito comum entre a classe dirigente e que é plantado apenas  para divertimento. Neste tipo de jardim, as plantas são arranjadas em forma de paredes, entre as quais podem ser encontrados diversos caminhos, que se entrelaçam num confuso traçado; eles são parecidos entre si e têm como principal propósito desafiar a pessoa a encontrar um belo palanque bem no meio do jardim. Alguns deles são retos e levam diretamente ao palanque; outros, porém, levam a pessoa a perder-se, fazendo-a vagar sem rumo. Quem percorre estes últimos não tem como perceber se está na rota verdadeira ou na falsa; pois os caminhos são semelhantes, não apresentando a seus olhos qualquer diferença. Ele não conseguirá alcançar seu objetivo, a menos que já esteja perfeitamente familiarizado e tenha o conhecimento visual dos caminhos que já percorreu anteriormente, quando conseguiu chegar à saída do labirinto. Entretanto, quem está numa posição privilegiada no palanque central do labirinto, consegue ver todos os caminhos e discernir quais os falsos e quais os verdadeiros. Nesta posição ele pode advertir e orientar aqueles que percorrem os caminhos internos do labirinto e dizer-lhes: "Este é o caminho, tome-o!". Quem nele acreditar chegará ao ponto designado; mas quem não estiver disposto a acreditar, confiando apenas no que seus olhos podem ver, continuará perdido e impossibilitado de alcançá-lo.
 O mesmo acontece em relação ao conceito que estamos discutindo. Quem ainda não conseguiu o domínio sobre sua inclinação malévola está perdido entre os caminhos e não pode diferenciá-los. Porém, os que governam e dominam sua inclinação malévola, que conseguiram chegar à saída do labirinto, deixando para trás aqueles caminhos tortuosos, podem ver claramente todas as alternativas e, estes sim, podem aconselhar quem está disposto a ouvir, acreditar e confiar.
 Mas qual é o conselho que nos dão? "Façamos uma verificação."; "Chequemos e computemos a contabilidade do mundo". Eles já experimentaram e já aprenderam que somente este é o caminho verdadeiro pelo qual se pode alcançar o bem, e que nenhum outro existe além deste.
 O que se depreende de tudo isto é que o homem deve constantemente - de forma permanente e, especificamente, em períodos de tempo por ele previamente estabelecidos - refletir acerca do verdadeiro caminho (em conformidade com os mandamentos da Torá) que o homem deve percorrer. Depois de ter se empenhado nesta reflexão, ele poderá chegar a ponderar se os seus atos estão em conformidade com este caminho. Procedendo assim, certamente ser-lhe-á mais fácil purificar-se de todo o mal e corrigir todos os seus caminhos. Como está dito nas Escrituras (Provérbios 4:26): 
"Reflete sobre a trajetória de teus pés e todos os teus caminhos serão firmes. Busquemos e pesquisemos nossos caminhos e então retornaremos a D-us".



LUZZATTO, Moshe Chaim. O Caminho dos Justos. Capítulo 3: Os Aspectos da Precaução. São Paulo: Editora Sefer, 1990. pp. 31-32.