São
Paulo, sábado, 26 de outubro de 1991
ARIANO
SUASSUNA
Após 10 anos afastado da literatura, o autor de
"Auto da Compadecida" está escrevendo novo livro
Marilene Felinto
Da equipe de articulistas
Alcino Leite Neto
Editor de "Letras"
Nomes como o da peça "O Auto da Compadecida" e do projeto artístico
Movimento Armorial são com certeza mais conhecidos do que o de seu próprio
autor, o escritor, dramaturgo e artista plástico paraibano Ariano Suassuna, 64.
Sem publicar desde 1971, e sem escrever oficialmente desde 1981, quando fez
declaração pública de que se afastava então da literatura, Suassuna dedica-se
hoje a um novo romance. Sobre o livro, prefere não falar ainda, para não
"perder o impulso".
Também preferia não dar entrevista. Mas, conforme disse, "como vocês se
dispuseram a vir de tão longe, isso me comoveu". Recebeu a Folha em sua
residência no Recife, um desses casarões antigos e enormes, que já não existem
mais.
Como seu personagem Pedro Diniz Quaderna, protagonista do romance "A Pedra
do Reino" e de várias outras histórias, Suassuna é um idealista lúcido.
Sempre fiel à originalidade de seu pensamento estético e político, ele não se
importa em ser considerado por vezes fora de moda.
Continua, pelo menos em tese, um "monarquista de esquerda", e pela
primeira vez revela a razão daquele seu afastamento da literatura em 81.
Pronuncia-se também, com duras críticas, a respeito dos "devotos da
modernidade liberal", na sua concepção encabeçados pelo presidente Collor.
Mas, sobretudo, conta histórias maravilhosas, dessas que não existem mais.
Folha - O livro que o sr. está escrevendo já tem título?
Suassuna - Não, ainda não. Eu só costumo batizar depois que
termino.
Folha - O sr. pode falar um pouco sobre ele?
Suassuna - Olha, prefiro não falar. Eu só gosto de falar do que já
fiz porque parece que falando muito sobre o que está fazendo a gente perde o
impulso. Comigo acontece isso. É o mesmo motivo que me leva a não escrever em
jornal. Eu escrevi em jornal um tempo, então parece que a gente vai dando saída
aos fantasmas, às coisas que a gente tem dentro de si e perde a força para
escrever a ficção, que é o principal. Que é o principal para mim.
Folha - O sr. não publica desde 1971.
Suassuna - É. Foi quando lancei "O Rei Degolado", mas
ficou incompleto. O livro teria cinco partes como "A Pedra do Reino".
Mas eu só escrevi duas e só publiquei uma, a primeira, que se chama "Ao
Sol da Onça Caetana".
Folha - O sr. não estaria escrevendo a continuação de "A Pedra do
Reino"?
Suassuna - Olha, se eu conseguir terminar, porque eu sou meio
descrente das minhas forças, ele vai concluir "A Pedra do Reino". Eu
sou um escritor muito demorado. Eu escrevo durante muito tempo, mas pouco.
"A Pedra do Reino", eu levei 12 anos para fazer, não é? De 58 a 70.
Folha - A que o sr. atribui esta sua lentidão?
Suassuna - Escrevo lentamente porque escrevo à mão. Depois
normalmente eu passo à máquina, corrijo à mão e ainda faço uma quarta vez.
Escrevo e reescrevo. Tenho uma tendência de ser prolixo. E então preciso me
policiar. Primeiro, porque deve ser assim, segundo porque livro muito volumoso
o pessoal tem dificuldade de ler. Eu pessoalmente gosto. Uma das minhas
leituras prediletas é "Guerra e Paz", de Tolstoi. Eu já li não foi
menos de 15 vezes não. E, toda vez, quando vou chegando no fim, eu fico
desgostoso. Pelo meu gosto seria maior ainda.
Folha - Por que o sr. parou de escrever "O Rei Degolado"?
Suassuna - Foi um processo curioso. O livro foi publicado primeiro
no "Diário de Pernambuco", cada semana um capítulo. Dessa maneira
escrevi duas partes. Aí, vi que podia publicar por partes. Então, publiquei a
primeira em livro e iria publicar a segunda quando resolvi parar, porque não
estava me satisfazendo mais aquela forma. Apesar de não parecer, eu sou muito
exigente com a forma de escrever.
Folha - Mas o quê não satisfazia o sr. na forma?
Suassuna - Eu não estava satisfeito com o narrador, Pedro Diniz
Quaderna, o mesmo de "A Pedra do Reino", a personagem principal.
Notei que tendo apenas Quaderna como narrador, uma grande parte do meu universo
interior ficava sem expressão. Então, senti necessidade de criar, digamos, um
pólo oposto a Quaderna. Aí não dava mais não, quer dizer, "A Pedra do
Reino" já tinha começado, já estava publicado. Tive que parar.
Folha - Nesse novo romance aparece um outro narrador?
Suassuna - Aparece. Os narradores são dois: Quaderna e esse novo.
Folha - O sr. também escreve poesia?
Suassuna - É. Aliás, a "Seleta" é único dos meus livros
que tem, inclusive, poesia, que é uma face da minha personalidade à qual
ninguém dá importância, mas eu dou. Eu acho que a fonte profunda de tudo o que
eu escrevo, inclusive do teatro, do romance, é a poesia.
Folha - Mas o sr. tem um livro só de poesias?
Suassuna - Tenho. "O Pasto Incendiado", que nunca foi
publicado.
Folha - Por quê?
Suassuna - Bom, uma parte da culpa é dos editores, a outra parte é
minha. Os editores não se interessam muito por poesia não, principalmente
quando eles sabem que a gente escreve outras coisas. Quando eles sabem que a
gente escreve teatro, romance e conto, perguntam logo se não temos algo nesses
gêneros, não é? Porque poesia vende pouco. Mas por outro lado a culpa é minha.
Eu sempre achei que a minha poesia devia ser reelaborada de acordo com um
conjunto maior, mais amplo, e então eu mesmo me resguardava um pouco. Porque,
somente assim, com os romances e as peças, uma coisa lançaria luz sobre a
outra. Porque minha poesia, diferentemente da prosa, é meio hermética.
Folha - O que o sr. quer dizer exatamente quando afirma que a poesia é a
fonte profunda de tudo que escreve?
Suassuna - Para dar um exemplo, na "Pedra do Reino", num
capítulo chamado "A Visagem da Onça Caetana", existe um trecho em que
Quaderna está esperando para o interrogatório do Carregador e ele se senta numa
espreguiçadeira, que é uma cadeira como essa onde vocês estão, e adormece.
Então ele não sabe se foi antes do sono ou durante o sono ou depois que
apareceu uma mulher com uns Gaviões e começou a passar o dedo na parede, de
onde ia saindo um texto. Esse texto que está lá é um poema, apesar de estar
escrito em prosa e é, no meu entender, a origem de toda a "Pedra do
Reino".
Folha - Mas mesmo sua prosa é bastante impregnada da poesia oral dos
cancioneiros populares, não é?
Suassuna - Ah! Sim, claro. A própria poesia narrativa dos folhetos
são nessa linha. Isso já vem em mim dessa oralidade. Eu sou, de certa maneira,
um ator frustrado. Nunca fui ator, primeiro, porque não sei decorar um texto, e
depois porque não sei dizer um texto, tenho a voz baixa, fraca, feia e rouca.
Eu não sei dar naturalidade e vida a um texto decorado. Se eu falar num palco é
um desastre. Então, eu não podia ser um ator nunca. Eu digo em "O Rei
Degolado", quer dizer, Quaderna diz, que ele é um misto de rei e de
palhaço, sendo que ele acha que a salvação dele vem pela parte de palhaço, pela
parte da coroa de flandres e da cara pintada do palhaço.
Folha - É o palhaço-rei, duas figuras são sempre presentes na sua
literatura. Por que isso? O que o sr. tem de rei e de palhaço?
Suassuna - É verdade, estão presentes. Eu acho que todo mundo tem essa
dicotomia, essa separação dentro de si. Mesmo que você não leve a sério nem o
palhaço, nem o rei; ou se você leva a sério o palhaço e não leva o rei, como eu
acho que acontecia com Cervantes. Cervantes não levou a sério a parte do rei
que ele tinha dentro dele, que era o Quixote não é? Recebi uma influência
enorme de Cervantes e de vários autores espanhóis, inclusive de Calderón de La
Barca. Talvez até maior que a de Cervantes foi a de Calderón.
Folha - O sr. realmente escreveu uma peça baseada em "A Vida é
Sonho", de Calderón de La Barca?
Suassuna - Escrevi. Chama-se "O Arco Desolado". Nunca
publiquei porque não presta. Mas em 1952, se não me engano, eu concorri com ela
ao Concurso do Quarto Centenário da Cidade de São Paulo. Ganhei menção honrosa.
Aliás, eu soube depois, por fonte segura, que eu cheguei a ganhar, e depois me
"desganharam". Mas voltando às influências, também fui muito
influenciado por Santa Tereza de Ávila, mulher por quem eu tenho grande
admiração. Da literatura russa recebi uma influência muito grande também,
principalmente de Gorgol e Dostoievski. Agora, no que respeita ao Quixote,
particularmente, eu noto uma diferença entre ele e Quaderna. É que D. Quixote
enlouquece lendo os livros de cavalaria e acredita em tudo aquilo. Quaderna, não.
O texto que apresenta bem claramente a diferença dele para o Quixote está em
quando ele diz: "Minha vida cinzenta, feia e mesquinha de menino
sertanejo, reduzido à pobreza e à dependência pela ruína da fazendo do
pai". Quer dizer, ele sabe que a vida é triste, dura, feia, áspera, e
lança mão do folheto e dos espetáculos populares como defesa. Mas tudo
lucidamente. Ele é lúcido.
Folha - Haveria também uma influência de Macunaíma na construção do
Quaderna?
Suassuna - Olha, alguém também falou disso, creio que Carlos Lacerda,
logo que o romance foi publicado. Mas, eu vou lhe dizer uma coisa: a meu ver,
pode haver uma identidade através das fontes. Fora daí tem uma coisa que a mim
não me agrada em "Macunaíma", que é essa idéia do herói sem caráter.
Aliás, eu comecei a reagir contra isso... Eu li "Macunaíma" muito
tarde, por um problema pessoal. Eu não simpatizava com Mário de Andrade, nem
simpatizo porque ele falou mal do meu pai por problemas políticos. Ele num
livro, inclusive, deu uma informação falsa sobre meu pai, que ainda hoje se
reproduz por aí.
Folha - Que informação foi essa?
Suassuna - Na Paraíba dos anos antes de 30, foi publicado um livro por
um jornalista chamado Érico de Almeida. E era um livro sobre o cangaço, onde
ele elogiava meu pai, que governou a Paraíba e combateu o cangaço, no tempo.
Mário de Andrade afirmou que Érico de Almeida não existia, que era um
pseudônimo de meu pai. O que não é verdade. Érico de Almeida eu não conheci,
mas o filho dele sim. Fiquei com raiva de Mário de Andrade a vida toda. Quando
já era adulto, pai de filho e já começando a ser velho, um amigo meu me
emprestou "Macunaíma". Mas, então, o que me afastava e afasta mesmo
de "Macunaíma" é a idéia do herói sem caráter. Eu tenho uma
hostilidade especial a essa maneira de ver o povo brasileiro. Um camarada que
vence a fome, a injustiça, a opressão, enfrenta os poderosos na pessoa de
Antônio Moraes, enfrenta a aristocracia rural sertaneja, enfrenta a burguesia
urbana sertaneja, através do padeiro, enfrenta a Igreja, enfrenta o padre,
enfrenta o bispo, o sacristão e enfrenta até as potências celestes, com quem
ele dialoga de igual para igual. Então, se ele é sem caráter, eu não sei quem é
que tem caráter não.
Folha - Mas João Grilo enfrenta tudo isso com a mentira, não é?
Suassuna - Ele enfrenta com o que quiser, ele enfrenta com o que tiver
na mão. Aqui no Nordeste existe um ditado que para mim é o que retrata João
Grilo. É um ditado que diz: a astúcia é a coragem do pobre.
Folha - Frequentemente o sr. fala do circo. Parece mesmo que o circo é um
paradigma do mundo para o sr.
Suassuna - É. É verdade. Exatamente isso. O circo é uma coisa
fortíssima em mim.
Folha - Mais que o teatro?
Suassuna - Anterior ao teatro, porque, veja bem, a minha infância
decorreu toda no sertão. Então, havia duas saídas para o cotidiano: o circo e o
livro. Vocês não podem imaginar o que era para mim a chegada do circo. Era a
abertura de um mundo novo, onde a rotina - como Quaderna com as cavalhadas e o
folheto - era vencida. A gente saía do universo cotidiano e entrava num mundo
mágico, onde tudo podia acontecer e onde tinha a presença, para mim
fundamental, do palhaço e do mágico. Nos circos da minha infância você tinha
mulheres lindíssimas - que deviam ser horrorosas, mas eu achava lindíssimas,
não é? As equilibristas eram para mim a equivalência do que hoje são as
bailarinas.
Folha - Sempre que o sr. fala do circo, fala do dono do circo. Por quê?
Suassuna - Antes disso, e para esclarecer, eu preciso falar da
importância dos livros, principalmente dos livros de aventura. A gratidão que
eu tenho pelos três ou quatro autores que me abriram o mundo da aventura, eu
não pago. Foi principalmente a tradução feita por Eça de Queiróz de "As
Minas do Rei Salomão". Eu achei aquele livro um encantamento. Outro foi
"Scaramouche", de Rafael Sabatini. Um dos motivos da sedução que
"Scaramouche" exercia e exerce sobre mim é que lá tem uma coisa que é
quase um circo, que é uma companhia de teatro ambulante. O personagem se mete
nas primeiras escaramuças de rua que prenunciavam a Revolução Francesa e é
obrigado a fugir. Ele foge e encontra uma companhia de teatro ambulante, onde
se engaja com um nome falso, e passa a ser ator. Então, é uma coisa que é
ligada ao circo. Por essas influências é que em tudo o que eu escrevo, ainda
hoje, a presença do circo é muito flagrante. Dentro do meu universo tem a mesma
importância que dou a "Almas Mortas", de Gogol. O outro foi Alexandre
Dumas, primeiro com "Os Três Mosqueteiros", que é um livro onde a presença
de Cervantes está muito marcada. O D'Artagnan é um Dom Quixote gascão, não é?
Agora, voltando ao circo e ao teatro, o que acontece é que no circo da minha
infância o teatro também era encenado. O próprio circo era uma companhia
ambulante de teatro.
Folha - Os chamados circo-teatros?
Suassuna - Exatamente. O primeiro circo que eu vi na minha infância
chamava-se Circo-teatro Stringhini, que era o nome do dono. Parece que ele era
italiano ou filho de italiano. Eu achava até muito estranho esse nome e tinha
uma figura, era um sujeito extraordinário, que era o palhaço Gregório. Esse
palhaço está ainda hoje dentro de mim. O narrador do "Auto da
Compadecida" é um palhaço inspirado nesse palhaço Gregório, e vem da
figura do cantador nordestino, que tem alguma coisa da oralidade do palhaço. Só
que ele fala em verso. E ele representa o autor também, representa ainda o coro
da comédia clássica.
Folha - E como foi a passagem de sua fascinação do circo para o teatro?
Suassuna - Quando eu entrei pela adolescência, aos 18 anos, entrei
para a universidade e me tornei colega de um grupo de gente interessada em
arte. Eu fui colega de turma de Aloísio Magalhães, de Hermilo Borba Filho e
vários outros e juntos nós fundamos um teatro do estudante. E Hermilo, que
exerceu também uma influência muito grande sobre mim, leu meus poemas, que eram
os primeiros poemas que eu escrevia ligados ao romanceiro popular do nordeste,
e disse que eu precisava conhecer Garcia Lorca e os autores espanhóis. Foi
Lorca que me levou a Gongora, como Gregório de Matos me levou a Quevedo. Ele me
colocou Calderón de la Barca na mão. E foi aí que eu tomei contato com aquela
visão, pela primeira vez, do mundo como um teatro. Ele tem uma peça chamada
"O Gran Teatro do Mundo", que me deu a noção do valor simbólico do
teatro e, consequentemente, do circo. Além disso, a forma circular do circo me
levava a crer que o mundo era assim também. E que a vida, então, era uma
representação à qual nós éramos chamados. Por isso, o dono do circo ficou ora
identificado com o autor de cada peça, ora identificado com o autor do mundo,
que era Deus, para mim. Isso acontece exatamente no "O Grande Teatro do
Mundo" porque o autor é Deus. Na primeira cena ele dialoga com outro
personagem que representa o mundo. Então, vem daí essa presença do dono do
circo, que é importante.
Folha - O sr. é muito apegado a sua infância, não?
Suassuna - Esse pegadinho meu com a infância vem do fato de que ela
foi, no meu caso ao mesmo tempo atormentada e maravilhosa. Então, foi um tempo
muito violento para os dois extremos. Eu passei por uma infância muito
tormentosa com os acontecimentos de 1930, quando meu pai foi assassinado.
Agora, ao mesmo tempo, uma infância rural, no meu entender, muito mais feliz e
rica do que uma infância urbana, porque você veja, eu tinha as caçadas, que era
uma coisa de que eu gostava muito quando era menino. Eu hoje não caço mais não.
Me aconteceu um incidente. Para ser franco, o que eu gostava mais da caçada era
a excursão, era o mato, era encontrar água. Era o encontro do próprio animal.
Folha - Que incidente foi esse que levou a desistir de caçar?
Suassuna - Um dia um amigo meu foi me contar um incidente que tinha
acontecido com ele. Disse que vinha no mato e de repente apareceu um preá, um
roedor desses, correndo assim... e entrou de baixo de umas macambiras, que é
uma planta xerófita, da raça de abacaxi, sisal. Meu amigo se abaixou então para
atirar no preá. Quando ele se abaixou e começou a procurar uma posição melhor,
de repente entrou uma cobra, que já tinha picado o preá e que vinha atrás do
preá, vinha no rastro dele. Meu amigo disse: "Ariano, quando a cobra
avistou o preá ela se enroscou toda e abriu a boca. Parecia a imagem do
demônio. Aí eu baixei fogo nela, matei". Foi então que eu percebi e me
perguntei: a imagem do demônio era a cobra ou era ele? Desse dia em diante eu
nunca mais cacei. Eu não tenho simpatia por esses exageros ecológicos que está
havendo agora por aí não, mas nesse dia eu parei de caçar.
Folha - O sr. disse uma vez, em 1978, que nunca tinha saído do Brasil e que
esperava nunca sair. Continua pensando isso ou já saiu?
Suassuna - Continuo. Não. Não saí, continuo aqui. Olha, vai lhe
parecer até estranho, mas um mês atrás eu fui convidado a ir para o Marrocos,
que é até um país que, se fosse ali em Alagoas, eu ia. Mas longe do jeito que
é, não vou não. Tenho horror a viajar, eu não gosto de viajar. Para os Estados
Unidos, nem que me ofereçam dinheiro eu não vou.
Folha - Por quê?
Suassuna - Veja bem, eu não tenho nada contra povo nenhum, certo?
Agora, uma coisa é o povo e outra coisa é o papel que o país dos vários povos
exerce no mundo. Eu sei que estou inteiramente fora de moda quando digo isso.
Uma das coisas de que estou com horror no Brasil é a tal modernidade liberal.
Deus me livre e guarde de qualquer modernidade liberal. Não tenho nada a ver
com isso, tenho horror a isso. Porque atualmente os devotos da modernidade
liberal estão querendo transformar o Brasil nos Estados Unidos de quarta
categoria ou numa Alemanha de terceira.
Folha - Quem são esses devotos da modernidade liberal
Suassuna - Atualmente são chefiados por Collor, não é? A meu ver o
Brasil não tem que ser Estados Unidos de segunda classe. Eu prefiro o Brasil
parecido com a Etiópia, um país pobre, desgraçado, arrebentado, do que com os
Estados Unidos. No diaem que o Brasil se transformar nos Estados Unidos, eu
vou-me embora. Taí uma hora que eu saio do país. Vou para o Marrocos ou vou
para a Etiópia. Eu prefiro o Brasil parecido com a Índia. Agora, eu não tenho
nada contra o povo americano. Os Estados Unidos são hoje a polícia do mundo.
São os gendarmes do mundo.
Folha - O sr. critica os Estados Unidos mas, no entanto, não se alinha ou
não se alinhava também com o extinto Partido Comunista.
Suassuna - Não, não, não. Também sempre disse que iam terminar
aliados. Tenho um artigo de 1974 em que eu já dizia: vão se aliar. Vão terminar
se aliando os Estados Unidos e a União Soviética e vão formar uma aliança de
rico contra pobre. E é o que está acontecendo. Viu agora na guerra do Golfo?
Quer dizer, se aliaram todos os ricos contra um país deste tamanho do Terceiro
Mundo. E a luta agora é essa. É a luta das metrópoles contra as aldeias. As
aldeias são o Terceiro Mundo. Você não se iluda não porque vai ser assim. E,
outra coisa, eu sempre fui socialista. Eu pertenço ao Partido Socialista
Brasileiro. Entrei no partido porque hoje eu acho que tenho condições de ser
socialista.
Folha - Mas quando o sr. escreveu "A Pedra do Reino" o sr. era um
monarquista?
Suassuna - É verdade. Mas eu vou concluir o que eu estava dizendo: que
sempre fui socialista, mas sempre tive horror ao marxismo. Eu acho o marxismo
um pensamento estreito, castrador. Eu não me entendia com os comunistas
brasileiros porque achava que eles agiam com faca de dois gumes, com pau de dois
bicos. Quando eu denunciava o imperialismo americano e me batia contra a
exploração americana no Brasil e coisa, eles batiam palma para mim. Mas quando
eu dizia que o stalinismo era uma ditadura horrorosa, assassina, era
considerado vendido aos americanos, a Wall Street. Eu sempre denunciei as duas
coisas. Depois vem a abertura de Gorbatchev. Quando vi Gorbatchev criticando os
Estados Unidos, fiquei entusiasmado, porque pensei que ele ia buscar uma nova
forma de socialismo. Mas ele está se vendendo ao capitalismo, ele está se
entregando ao capitalismo de mão beijada.
Folha - Como é que o sr. se aproximou do monarquismo do ponto de vista
intelectual?
Suassuna - Eu vou explicar. A minha simpatia pelo regime monárquico
começou muito cedo na infância, através da influência de um tio meu, Joaquim
Duarte Dantas, monarquista e católico. Ele lia para mim trechos e mais trechos
de um livro português escrito por um certo Antero de Figueiredo, que hoje está
meio fora de moda, mas a quem ele admirava muito. E o livro de Antero era sobre
d. Sebastião. Um dos motivos que me levavam para a monarquia era o motivo
estético. A monarquia é mais bonita do que a república. Plasticamente, pelo
ritual, pela liturgia, por tudo. Então, eu sou um escritor e um artista e eu
tenho uma natural atração pela beleza, pelas coisas bonitas. Agora, por outro
lado, a própria visão do povo brasileiro é uma visão mais monárquica do que
republicana.
Folha - Como assim?
Suassuna - Pelo seguinte: porque você veja na oralidade, nos contos
orais que estão por aí. Aliás, isso é do conto oral do mundo inteiro. Eu duvido
que você, na sua infância, tenha travado conhecimento com um conto oral que
começa assim: era uma vez um presidente da república. Não é verdade? Sempre se
diz: era uma vez um rei.
Folha: O sr. tem esperanças que o Brasil volte a ser monárquico?
Suassuna - Não tenho não. Não tenho nenhuma perspectiva, estou falando
em tese. Bom, aí você dirá, mas você ainda é monárquico? Não, eu não sou. Não é
que eu tenha abandonado a monarquia não. A monarquia me abandonou.
Folha - Em que sentido?
Suassuna - Acho que do ponto de vista político, do ponto de vista do
momento, do ponto de vista prático, eu coloquei a monarquia entre parênteses.
Principalmente porque em 1981 morre d. Pedro Henrique, que era o herdeiro do
trono brasileiro. E eu, apavorado, li que os dois filhos mais velhos dele eram
da TFP, um movimento da extrema-direita. Então, se você olhar as datas, d.
Pedro Henrique deve ter morrido no fim de julho ou princípio de agosto de 81. E
a minha carta, quando eu entrei em crise e resolvi parar e abandonar tudo, foi
escrita pelo desgosto causado por essas notícias, e ela é do dia 9 de agosto de
81. Foi o desgosto de que aquele meu sonho, que eu achava tão bonito, tivesse
acabado. De um príncipe que tomasse não o lado do Brasil oficial, mas sim o
lado do Brasil real, do povo de Canudos, que lutou e morreu por eles em
Canudos. Então, eu sempre procurei me colocar do lado do Brasil real. Se a
monarquia se revelava de extrema-direita, eu largava a monarquia, porque mais
importante do que a forma de governo ou de regime, para mim era o povo, como
continua a ser. Continuo na posição que eu estava, ela é que aderiu à TFP.
Apoiada, inclusive por Delfim Neto. Eu tomo partido de tudo, entre Delfim Neto e
a TFP eu sou do lado da TFP. Veja bem: de fato eu não estou nem com Delfim Neto
nem com a TFP, eu estou com o povo de Canudos, mas, se é para escolher entre
essas duas catástrofes, eu prefiro a TFP, porque é melhor. Pelo menos eles têm
uma coisa que eu respeito. Eles têm seriedade. Eles acreditam. Só haveria um
meio de eu apoiar de novo a monarquia: seria com um príncipe da era de Bragança
que apoiasse o socialismo de Canudos com Miguel Arraes como primeiro-ministro.
Folha - Quando o sr. escreveu aquela carta em 81, aquela declaração pública
de que estava abandonando a literatura, por que ao invés de somente se isolar e
parar de escrever precisou comunicar isso ao público?
Suassuna - Olha, eu não pensei que iam dar tanta importância não.
Parece que eu me julgo menos importante do que vocês me julgam. Eu fiz aquilo
mais para me despedir dos leitores do "Diário de Pernambuco", onde
estava crescendo e pensei que ia ficar naquilo mesmo. No outro dia eu tive que
me esconder porque era revista, jornal, televisão tudo atrás, em cima de mim.
Eu fiquei apavorado. Nunca pensei que tivesse uma repercussão daquela. Um
escritor que deixa de publicar não é um acontecimento tão sério não.
Folha - Seu pai, que era governador da Paraíba, foi morto em outubro de 30
por causa dos efeitos da Revolução. Quarenta anos depois, no mesmo mês, o sr.
inaugurou o Movimento Armorial. Este projeto não teria sido sua resposta à
Revolução de 30, que o sr. não cansa de culpar pela morte de seu pai e também
pelo processo de vulgarização do Brasil?
Suassuna - O Armorial foi uma resposta a esse processo de
descaracterização e de vulgarização ao qual está submetida a cultura
brasileira, que ainda está em curso. E a ligação que teve foi porque eu tentei
fazer o lançamento no Movimento Armorial no dia 9 de outubro de 1970, porque é
o aniversário da morte de meu pai. Mas o Movimento Armorial não foi lançado
contra. Eu apenas queria que ele fosse lançado no dia da morte de meu pai.
Então, teria indiretamente uma presença de vida. Em 70, quando a gente falava,
era praticamente proibido, porque os movimentos que falavam em cultura
brasileira eram todos de esquerda e tinham sido desbaratados pela repressão. O
movimento que procurou se rearticular, depois daí, a meu ver, era um movimento
equivocado e derrotista, que era o movimento tropicalista. Porque eles pegaram
uma visão que os americanos difundiam na América Latina toda, do homem e de uma
mulher latino-americanos ridículos. Eles pegaram Carmem Miranda e as rumbeiras
de Cuba, juntaram num saco só e espalharam no mundo todo a imagem do homem
latino-americano. Isso era uma bandeira americana de desmoralização e eles
passaram a usar como estandarte próprio.
Folha - Para o sr. não existe um processo de descoberta da nacionalidade
através do tropicalismo?
Suassuna - Não, pelo contrário... Eles compactuaram inocentemente. Eu
acho que foi inocentemente.
Folha - O sr. gosta de Caetano Veloso?
Suassuna - Não, não gosto. Você quer saber o que eu gosto como música?
Eu gosto de Villa-Lobos e Antonio Madureira, coordenador do Quinteto Armorial.
Gosto de Guerra Peixe. Aí a pessoa vem dizer: mas ele é um grande poeta. Grande
poeta brasileiro para mim é João Cabral de Melo Neto, Jorge de Lima e Janice
Japiassu, a grande poetisa armorial do Nordeste. Eu não desço daí não. Meu
nível é por aí. Bom, pode até parecer um elitismo de minha parte, mas é mesmo.
O que a gente queria era procurar uma arte erudita brasileira em todos os
campos.
Folha - Mas a quem se destinaria a arte Armorial? Ao povo?
Suassuna - Ah! Esse é um outro problema. Não sei. As pessoas dizem a
mim: me diga, mas o povo não lê seu romance. Não lê mesmo não, está certo: Eu
nasci numa sociedade em que o povo a isso não tem acesso. Nem por isso eu vou
mudar a minha maneira de ser, porque aquele tipo de literatura que eu faço é
fundamental para mim. Eu só posso expressar meu universo dessa maneira. É isso
que me fascina, é isso que me apaixona e eu só sei criar movido pela paixão. Se
eu fosse levar pela razão, iria escrever novela de televisão. Mas eu sou guiado
pela paixão e o que me apaixona são essas histórias do povo: a "História
do Cavalo que Defecava Dinheiro".
Um poema inédito do autor.
ABERTURA 'SOB PELE DE OVELHA'
Falso Profeta, insone, Extraviado,
vivo, Cego, a sondar o Indecifrável:
e, jaguar da Sibila inevitável
meu Sangue traça a rota deste Fado.
Eu, forçado a ascender, eu, Mutilado,
busco a Estrela que chama, inapelável.
E a pulsação do Ser, Fera indomável,
arde ao sol do meu Pasto incendiado.
Por sobre a Dor, a Sarça do Espinheiro
que acende o estranho Sol, sangue do ser,
transforma o sangue em candelabro e veiro.
Por isso, não vou nunca envelhecer:
com meu Cantar, supero o Desespero,
sou contra a Morte e nunca hei de morrer.
ARIANO SUASSUNA (1990)